— Será que é aquele ali? — perguntei para minha esposa pouco antes do GPS avisar que tínhamos chegado ao destino. É que a adoção envolveu uma pequena viagem: duas horas de carro, com direito a um café para controlar o nervosismo. Enquanto estacionávamos, Robertinho andava com dificuldade no chão de terra, alheio aos visitantes, ao trânsito, à vida.
Descemos do carro cientes de que aumentávamos a família, mas longe de imaginar o tamanho daquela decisão. Robertinho parecia velho — muitos anos a mais que os 10 que tinham nos dito por WhatsApp. As fotos também deixavam clara a diferença entre a fofura que conhecemos pelo Instagram e a que encontrávamos face a focinho, quase 70 quilômetros depois.
Coluna encurvada, os pelos grisalhos do rosto contrastando com os negros do corpo e um jeito de andar galopante e torto, mais um sinal de que a saúde não ia bem. Era uma mistura de cocker spaniel com Gandalf: simpático, idoso e dono de uma certa magia, afinal só assim para ainda estar vivo.
Ísis, a moça que o resgatou e o batizou como Robertinho, contou que ele tinha sido encontrado três anos antes, na beira de uma rodovia. Abandonado por ser velho demais. Sim, velho já naquela época.

Mas Robertinho teimava em viver. Por dois anos, morou na rodovia, alimentado por funcionários de uma loja. Foram 24 meses tentando achar uma família que o adotasse, mas o máximo que a Ísis conseguiu foi um lar temporário para o bicho, que deixou a estrada e foi passar o resto de velhice num canil.
— Eu já tenho cachorros em excesso, ou teria ficado com ele também — explicou a moça, triste. Acrescentando que tinha dado um banho nele na véspera, logo depois de pegá-lo no canil — Ele estava cheirando a xixi — completou.
Abrimos a porta do carro e Robertinho subiu. Torto e incapaz de ficar de pé por muito tempo, mas empolgado. A viagem de volta foi tranquila, com o cachorro logo adormecido no banco de trás, no colo da Lu.
— Rafa, ele não se mexe? Tá respirando?
— Claro que tá, Lu. Sem desespero, ele tá vivo — respondi, mas com um tremor de voz que não escondia o medo. Será que o cachorro partiu antes de chegar?
Nada, era só sono profundo. Robertinho não acordou com o barulho da chegada e da porta se abrindo — e tomou um baita susto quando tentei carregá-lo para fora do carro, com mordidas no ar e um olhar de “quem é você?”
No dia seguinte, a vet. Será que ele tem leishmaniose? Giardia? Doença do carrapato? Cinomose? Diabetes? Problema de coração? Hipertensão? Problemas nos rins? Fizemos testes mil: nada, nada, nada. Contrariando todos os medos, o bicho era saudável.
— É um cachorro velho e que sofreu tanto, tanto. Mas, por incrível que pareça, ele só tem coisas de idoso mesmo: catarata, dentes caindo, problema de coluna e um pouco de surdez. E alzheimer — disse a médica. Aceitável para um cão que, para ela, já beirava seus dezesseis anos.
Sim, cachorro pode ter alzheimer. Para o Robertinho isso significava dificuldade de desviar de objetos, inquietação noturna constante e, bem, um jeitão meio esquecido e atrapalhado que fazia ele espirrar e, com o movimento abrupto, bater a cabeça no chão. Apesar disso tudo, depois de três anos sem casa, ele precisou só de alguns dias para entender que agora morava no meu colo.
— Será que ele entende que o nome dele é Robertinho?
Tentamos, mas ele nunca respondeu ao chamado. O que permitiu uma mudança de nome — um novo batismo, afinal aquele cachorro tinha nascido de novo. Robertinho no canil e nas estradas da vida, em casa ele virou Conhaque. Um nome para combinar com o irmão mais velho de lar, mas um pouco mais novo de anos: Whisky.
Conhaque ganhou ração para idosos, vitaminas, petiscos, vacinas, camas quentinhas e muito carinho na pança. Tratamos os dentes, que ficaram branquinhos. E pararam de doer. Também cuidamos das dores de coluna, ensaiamos marcar sessões de fisioterapia e mudamos a disposição de móveis da casa. A regra, por conta do Conhaque, virou não ter uma cadeira, vaso de planta ou sofá fora de lugar. Só assim para ele não se prender nos obstáculos que surgiam pelo caminho. O piso da sala ganhou uma cobertura de borracha feiosa, mas que ajudava o Conhaque a ficar de pé. Um lar que não só era dele, mas para ele.
Estimulado por tanto carinho, Conhaque reagiu. E logo a casa era um misto de sorrisos caninos com bolas de pelo para todo lado; passeios felizes e brinquedos espalhados pelo chão; roncos e patas adormecidas que se mexiam a cada pesadelo. Os cachorros brincavam e dormiam pertinho, amigos. E ele até aprendeu que se chamava Conhaque, para a euforia dos humanos. Era a paz, enfim.
Quer dizer: paz, mas recheada de trabalho, porque Conhaque demandava por uma matilha inteira. As dores da velhice e o alzheimer eliminaram as noites tranquilas e nós — cães e humanos — acordávamos 10, 15, 20 vezes a cada madrugada. As lutas para fazê-lo comer eram também ingratas e Conhaque recusava ração, mas enlouquecia ao ver um pedaço de pão duro e velho. Anos de rua, né? Velhos hábitos custam a passar.
Com tanta presença em nossas vidas, não percebemos a morte até a última manhã, quando um ultrassom urgente revelou a doença inominável em estado terminal. Após 150 dias com a gente, Conhaque galopou suas pernas tortas rumo ao infinito. Partiu depois de uma soneca em nossos colos e com seus humanos cantando, baixinho, perto de suas orelhinhas peludas.
Dizem que o amor está na dedicação. Vai ver foi por isso que sofremos tanto com a morte de um cachorro que entrou em nossas vidas há apenas cinco meses. Ou quem sabe tanta dor é porque o luto, no fim das contas, é sempre um só. A cada morte sofremos também por todas as anteriores e tememos as que virão.
Ficaram a saudade, a dor e incontáveis lições. Na primeira versão deste texto, feita logo depois da partida dele, eu acrescentei outra coisa na lista de permanências: um vazio gigante. Hoje, com mais esse luto já se acomodando entre outros, percebo que não. A casa, e nossas vidas, ainda transbordam de Conhaque.